A vez de Ângelo
Crianças naufragaram na viagem
para o futuro
03/10/15 - 00h00
No dia 11-2-2005, o
helicóptero do presidente Lula desceu na comunidade de Canaã, no agreste
pernambucano, ao lado da cidade de Toritama; o presidente caminhou até um grupo
de crianças e agachou-se em frente a elas. Um fotógrafo captou a cena, e a foto
foi publicada nos jornais. Ao vê-la, decidi visitar as crianças e, com base no
que observei, escrevi uma carta ao presidente, sob o título “Estas crianças têm
nome — como dar-lhes um futuro?”.
Descrevi a realidade onde
elas viviam, especialmente a escola onde estudavam, reconheci que o presidente
ainda não era o culpado daquele triste cenário de penúria educacional e pobreza
social, mas que seria o responsável se, dez anos depois, o quadro se
mantivesse; na carta sugeri dez medidas para mudar aquela realidade, seguindo
as linhas do projeto que tentei executar ao longo de 2003, quando fui ministro
da Educação.
Na semana passada voltei ao
local e vi a tragédia resultante de dez anos de abandono da educação e falta de
políticas públicas consistentes para a emancipação dos pobres.
A menina — na foto está bem
em frente ao presidente — de nome Taciana, então com 6 anos, deixou a escola
aos 14, engravidou aos 15 e aos 16 tem um filho com 1 ano e dois meses, chamado
Angelo Miguel. Seu irmão, conhecido como Cambiteiro, estava no grupo, mas não
quis aparecer na foto. Fora da escola antes dos 15 anos, tornou-se vigilante
informal nas pobres ruas de Canaã, até ser assassinado.
O menino chamado Rubinho,
então com 7 anos, para quem o presidente Lula parecia olhar, deixou a escola
antes da quinta série e, aos 17, tem um filho de nome Natan Rafael. Seu irmão
Diego, que não aparece na foto por ser então muito pequeno, hoje com 15 anos,
já esteve preso; na cadeia foi jurado de morte pelos presos, esfaqueado, fugiu
do hospital e desapareceu. Jailson, o que ri para o presidente, e Josivan, na
ponta direita da foto, deixaram a escola antes de terminar a quarta série.
Jaques, então com 9 anos, deixou a escola com 13; o menino conhecido como Nego,
então com 8 anos, não estudou e tem hoje dois filhos.
Nesses dez anos, a vida
daquelas crianças tornou-se uma monótona repetição de fatos e fracassos: todas
deixaram a escola antes de concluir o ensino fundamental, fazem parte do
exército de analfabetos funcionais que ocupa o país; todas foram trabalhar ao
redor dos 15 anos, em trabalhos informais sem qualificação; tiveram filhos
ainda na adolescência; nenhuma teve o futuro a que tinha direito ao nascer.
Toritama é um Mediterrâneo
onde aquelas crianças naufragaram na viagem para o futuro, diante dos olhos do
presidente Lula e de todos nós.
Dez anos depois carreguei
nos braços Angelo Miguel, filho da Taciana, e me veio o triste sentimento de
ver nele a repetição do mesmo histórico círculo vicioso que gira passando de
pais para filhos, sem mudar o rumo do destino. E seria tão fácil, se
garantíssemos escola com qualidade para todos de uma geração, como aquela de
Canaã, dez anos atrás. Sem isto, agora é a vez de Angelo.
Cristovam Buarque é senador
(PDT-DF)